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A lucidez da velhice - LEONARDO BOFF POR ANA MARY C. CAVALCANTE

Esta entrevista com o teólogo Leonardo Boff, 72, foi feita antes da morte de Bruce Cristian de Oliveira Sousa, 14. Boff visitava Fortaleza, convidado do VI Congresso Estadual dos Fazendários do Ceará (20 a 23 de julho). A cidade sequer imaginava uma tragédia como a do domingo, 25 de julho, quando o policial Yuri Silveira atirou contra o adolescente, em um erro irreversível. Mas as palavras serenas de Leonardo Boff também abraçam Francisco das Chagas, pai que viu o filho morrer na garupa da moto que conduzia, depois de uma tarde de trabalho.

Abraçam quando afirmam: “Somos chamados não para terminar, mas para nos modificar na morte, para que a vida dê um salto”. Ou quando fortalecem: “Essa experiência do ser humano é de usar a resiliência. Resiliência significa não deixar que as coisas sombrias tenham a última palavra, amadurecer com elas”. E abraçam ainda quando indicam: “A fé aposta que a vida vai triunfar, que as coisas não acabam na morte”.

À assertiva do poeta Vinicius de Moraes, que traduziu a vida como “a arte do encontro”, um complemento: a velhice é o inevitável reencontro consigo mesmo. Então, relendo sua filosofia de vida, Leonardo Boff compreende as dores e felicidades do tempo. Com a lucidez de quem sabe a felicidade, a propósito, como “fruto de coisas que acontecem antes”. E com a sabedoria de quem percebe, em uma laje de periferia do Brasil, uma reconciliação possível ao mundo. (colaborou Luiz Henrique Campos).

O POVO - É possível conciliar as duas dimensões de felicidade: a individual - o que seria, particularmente, importante - e a coletiva?
Leonardo Boff - Creio que a felicidade resulta de relações que faço boas para comigo mesmo e boas para com os outros, a natureza, o todo. E para com Deus, a realidade mais suprema. Então, a felicidade não pode ser alcançada diretamente, é fruto de coisas que acontecem antes. E o ser humano é um nó de relações. Como diz Carlos Drummond: “Estou diluído dentro da natureza, floresço com os ipês”. Essa percepção dá um sentido mais profundo à felicidade. É impossível alguém ser feliz sabendo que seus irmãos estão morrendo de fome e sede, outros estão sendo vítimas dos vendavais que destroem. Mesmo assim, pode criar um núcleo profundo de serenidade e de paz quando integra o negativo pessoal e o negativo das coisas e faz uma síntese cujo efeito é uma felicidade possível aos humanos, em um mundo que, em grande parte, é inumano.
OP - Existe relação entre felicidade, espiritualidade e autoajuda?
Boff - A autoajuda é uma grande indústria que trabalha com falsas promessas e tem como pressuposto a vulnerabilidade e a fragilidade humana. Todo ser humano quer ser feliz. E a autoajuda oferece uma fórmula rápida e fácil. Isso é alienação. A felicidade vem de dentro e é uma conquista que o ser humano realiza partindo da condição humana. Somos seres que têm a dimensão de luz e de sombra. Somos diabólicos, que dividem, odeiam e somos seres simbólicos, que unem, amam, são solidários. Essa é a condição humana. Não é um defeito, é a nossa marca. A felicidade vem do equilíbrio dessas duas dimensões, na medida em que faço uma opção pela dimensão luminosa e não deixo que a dimensão tenebrosa tenha a hegemonia da minha vida. Se parto dessa condição humana, diminuo as expectativas, a felicidade é mais alcançável, mais serena. Não significa que não tenhamos momentos especiais de felicidade. É a dimensão vertical. Um encontro com a pessoa amada, o irmão que estava no exílio volta... Aquele momento é supremo. Agora, tem aquele momento de estar, serenamente, feliz, que é o cotidiano da vida. O fenômeno do casamento é uma bela figura. Quando a pessoa se enamora, sente uma enorme felicidade. Mas é fugaz. Casa, vem o dia a dia, se descobrem nos seus limites, um tem que tolerar o outro. Ele está feliz na medida em que consegue fazer uma síntese e conviver, apesar e com as diferenças. “Hoje vamos jantar fora”... Romper aquele cotidiano que ameaça a felicidade. E ser criativo para manter aquele momento que é um pequeno êxtase, um pequeno encantamento. A felicidade vive dessas dimensões. E isso é sabedoria da vida, coisa que o mercado não dá. É uma conquista do coração.
OP - Mais próximo à espiritualidade...
Boff - A espiritualidade tem que ser bem entendida. Não é sinônimo de religião. É uma dimensão do profundo humano, onde o ser humano coloca as questões de base: o que eu faço nesse mundo, de onde venho, para onde vou, o que posso esperar depois dessa vida? A felicidade implica que a gente não exclua do nosso horizonte a doença e a morte. A morte nessa compreensão de que é o momento mágico, alquímico de transfiguração. Somos chamados não para terminar, mas para nos modificar na morte, para que a vida dê um salto. A morte é uma invenção da vida para ela poder passar para um outro nível e continuar vida. A felicidade implica ter essa serenidade de encarar a morte como pertencendo à vida. A vida é mortal. Vamos morrendo, em prestação. Simultaneamente, vamos nascendo, lentamente, para horizontes mais vastos, até o grande horizonte. As duas coisas coexistem. O ser humano, quando interioriza essas questões, descobre a sua dimensão espiritual. E isso temos que resgatar, contra a mercantilização de todas as coisas. A amizade, o amor, o perdão não têm preço, têm imenso valor. A espiritualidade vive desses valores. E que dão sentido à existência humana. Para além da própria vida e da morte.
OP - Seguir uma religião traz felicidade?
Boff - Traz felicidade e pode trazer desgraça. A natureza da religião é trazer reconciliação, apoiar o amor, fazer com que as pessoas se abram à totalidade, a Deus. Quando a religião adoece - e a doença da religião é a arrogância de dizer “somos a única igreja verdadeira” -, as pessoas se tornam inimigas. Grande parte das religiões, inclusive, a Igreja Católica, tem essa doença. E temos que libertar a religião. A religião é um fio condutor que tudo amarra e que transforma esse cosmo em uma grande unidade que chamamos Deus - ou mil nomes que damos, Tao, Shiva, não importa. A espiritualidade tem a ver com isso, e a religião devia manter acesa essa chama interior. O grande projeto das religiões, especialmente, de Jesus era tratar humanamente os seres humanos. E eu os trato humanamente quando os amo, os respeito, os acolho. O efeito disso é o bem-estar, a alegria de viver junto com os outros.
OP - No mundo atual, com os prazeres mais explícitos (ou com mais prazeres permitidos) e com os conflitos mais complexos, onde está a felicidade? Se tornou mais difícil, ou mais fácil encontrá-la?
Boff - Essa situação coloca um desafio a cada pessoa. A felicidade se encontra na justa medida entre a luz e a sombra, entre o instinto de rejeição e o de congregação. O ser humano tem que exercer a sua liberdade no sentido de saber os limites da realidade, aquilo que prejudica, ou que integra. Isso é uma conquista difícil. É o preço que cada pessoa tem que pagar para poder ser feliz. E a sociedade não ajuda a buscar essa justa medida porque exaspera o desejo, solicita o consumo material. É o discurso mostrando a criminalidade, exaltando pelas mil formas a violência dos seres humanos. É uma cultura doente. É difícil encontrarmos o equilíbrio e realizarmos o projeto de felicidade.
OP - E se chega, em algum momento da vida à felicidade? Essa busca tem um fim?
Boff - Nunca tem fim porque o ser humano é um projeto infinito. É a famosa experiência de Santo Agostinho, o grande procurador: “Eu te procurava dentro, e tu estavas fora. Te procurava fora, tu estavas dentro. Finalmente, te encontrei, ó beleza tão antiga e tão nova! E aí descansou meu coração”. Essa experiência do ser humano é de idas e vindas, fracassos e sucessos, usar a resiliência. Resiliência significa poder dar a volta por cima, aprender do fracasso, não deixar que as coisas sombrias tenham a última palavra, amadurecer com elas. A felicidade supõe um amadurecimento das experiências humanas. Vem de uma construção difícil, lenta. E junto vem a serenidade, a capacidade de uma relação que aceita as diferenças. Convivo com jovialidade e não com amargura. A felicidade é fruto desse processo. A idade conta muito.
OP - Ter consciência do mundo, se tornar adulto, conhecer o amor e a dor de cada dia vai nos tornando mais utópicos, ou mais realistas?
Boff - As duas coisas. Porque a utopia é uma energia que está dentro de nós, quando a gente fala do princípio de esperança. O princípio de esperança é aquela energia que nos faz enfrentar dificuldades, projetar sonhos, ter visões melhores do mundo. Mas sabemos que a utopia nunca será realizada. A utopia é como as estrelas: elas estão lá em cima, enchem de sentido a noite, orientam os navegantes, mas nunca alcançamos as estrelas. Mas, se não tivéssemos as estrelas, o que seriam de nossas noites? Porque amamos as estrelas, não tememos a noite. A noite é o mundo real. A gente vive tentando traduzir a utopia em processos de viabilidade de relações de trabalho, matrimônio. Tudo é uma aposta. Se der certo, somos felizes. Se fracassar, temos a capacidade de sintetizar isso de uma forma que nos faz mais maduros. As duas coisas convivem: o real está aberto ao utópico, e o utópico pede realização. Nunca conseguimos realizar totalmente. Por isso estamos sempre a caminho.
OP - Em matérias pelos sertões do País e pelas carências das pessoas, nos surpreende sempre a reinvenção do existir, a celebração da vida - mesmo que seja uma vida severina. Como o senhor explicaria a felicidade do pobre?
Boff - A felicidade do pobre está naquelas pequenas coisas que nós, mais instruídos, vivendo na cidade, os benefícios da cultura, muitas vezes, perdemos. O pobre é feliz pela solidariedade que existe entre eles. Uma mulher morre, deixa cinco filhos, eles disputam para adotá-los. As festas deles - e eu trabalho em favela há mais de 20 anos - são de total singeleza. É pipoca e Coca-Cola. É conversa, dança, contar casos, com o mínimo de coisas materiais. Um tempo atrás, recebi a visita de um jornalista alemão que cobriu áreas do mundo inteiro. Eu o levei para uma festa popular. Comiam um churrasquinho, tomavam Coca-Cola, dançavam, e ele começou a chorar: “Tô pedindo a Deus que quero morrer num lugar assim, onde os seres humanos se reconciliam”. Todos pobres e lascados, mas felizes. (A felicidade do pobre) vem das relações.
OP - O senhor consideraria o povo brasileiro feliz?
Boff - Considero o povo brasileiro um dos mais felizes do mundo. Porque ele tem uma visão encantada do mundo: se sente acompanhado por Deus, pelos santos fortes, pelos orixás... E tem uma visão lúdica do mundo. Sabe cultivar seu Carnaval, dançar suas festas, torcer por seu time. E é um povo de esperança, sempre acredita que amanhã vai ser melhor. Essas dimensões vão ter um significado no processo mundial da emergência de uma nova sociedade. Não pode ser prolongamento desta: materialista, fria. Tem que incorporar a razão cordial, a relação de amizade, o sentido da cooperação e da solidariedade. São fatores que produzem a felicidade. O povo brasileiro tem um superávit enorme nisso. E a convivência com Deus. Sabem que Deus está junto. “Fica com Deus, vai com Deus, graças a Deus”. Isso pertence à nossa identidade. O povo brasileiro não acredita em Deus. Ele sabe que Deus existe: sente, na pele, Deus. Deus pertence à vida, é o galho último no qual me agarro. Por isso, não vamos para a violência absurda, nunca fizemos grandes revoluções. O que nos leva a saber sempre negociar ou conciliar.
OP - E essa violência extremada que tem se manifestado nos indivíduos, onde está Deus nessa história?
Boff - Na medida em que o Brasil entra nas relações capitalistas, incentiva. É próprio da lógica do capitalismo a busca individual da felicidade, da casa, do carro. Petrópolis, onde vivo, cidade imperial, bonita, tem 102 favelas, escondidas atrás de cada morro. Esses são vítimas da televisão, da propaganda. Fazem o crime para roubar a Nike do outro. Entram na droga pra ganhar dinheiro e realizar os desejos que foram suscitados pelo marketing da nossa cultura. E há sempre uma violência que é inerente ao ser humano - se ele não se autocontrola. Às vezes, tem uma dimensão de vingança. Isso é o lado decadente do ser humano. Não temos uma equação perfeita que define o ser humano. Ele está em construção, buscando o equilíbrio. Pode ser o satã da Terra, que destrói nosso planeta, como pode ser o anjo bom, que cuida. Ele vive essa contradição. Quando a gente vê essa violência, tem que entender quem é o ser humano. Porque temos ódios dentro de nós. Temos violências. Mas a educação, a ética, a espiritualidade nos pede e conseguimos moderar. É um processo da civilização. Esses que não puderam ter acesso a essa civilização são mais expostos ao lado instintivo do ser humano.
OP - E a política pode dar de comer a quem tem essa fome de felicidade? Eleições se aproximam e se renovam promessas e esperanças...
Boff - A política é a busca comum do bem comum. Isso é o seu sentido ético. Agora, a política que existe é a busca do poder. E as promessas, 99% são enganosas. Fundamentalmente, a nossa política é conceder ao povo o direito de, a cada quatro anos, eleger o seu ditador. Uma vez eleito, ele faz o que quer. Não dialoga com as bases, os movimentos sociais. É a política no seu lado patológico. E isso temos que, pela cidadania, curar. Saber escolher os candidatos, submetê-los à crítica, ver que conexão têm com o povo, quais seus projetos reais.
OP - A eleição de Lula para presidente do Brasil, apesar de sua biografia sertaneja, é um marco na história do País, de rompimento com um passado político que embalava o Brasil desde o nascimento. Qual outro passo importante para o País se distanciar ainda mais desse passado?
Boff - O Brasil tem que despertar da sua importância mundial para o equilíbrio do sistema Terra, que entrou em processo de caos devido ao aquecimento. Muitos já falam que o Brasil é a primeira potência grande dos trópicos, o G-0. Os outros são grandes porque têm dinheiro, indústria de ponta, armas nucleares:o G-2, o G-8, o G-20. Somos a potência ecológica. O Brasil pode ser a Roma dos trópicos, o velho sonho de Darcy Ribeiro. Uma Roma do direito, da dignidade, da cordialidade. Temos as bases ecológicas, geográficas para essa posição ímpar no mundo. E temos uma população que vem de 60 povos que aqui se amalgamaram, não criaram fundamentalismos, discriminações, mas fizeram uma síntese que poderá ser uma antecipação daquilo que vai ser a humanidade amanhã.
OP - Aos 72 anos, o senhor mantém sua fé - na vida, no homem, no que virá - inabalável?
Boff - Enquanto vivemos, agradecemos a vida. Porque a vida é a floração maior que o universo produziu, o dom maior que Deus nos entregou. Amo a vida, mas me dou conta de que estou no entardecer, descendo a montanha da vida. Mas que ela continuará. Então, quero sair do mundo abençoando a vida, e não a maldizendo. E me reconciliando com todas as coisas e agradecendo por ter passado.
OP - A fé é mais acomodação ou inquietação?
Boff - A fé é uma aposta. E aposta é sempre inquieta e nunca está acomodada. Porque a gente não sabe se vai dar certo. A fé aposta que o fim é bom, que a vida vai triunfar, que as coisas não acabam na morte. Acredito que o desígnio e a palavra última não têm a morte, têm a vida. Essa é a grande mensagem das religiões, especialmente, do Cristianismo, que a vida é o grande mistério.
OP - Aos 70 anos, o senhor se declarou, oficialmente, velho. O senhor se deu conta do tempo que passou? O que o senhor celebra, especialmente, aos 70 anos?
Boff - Bom, primeiro, eu achava que ia morrer aos 40. Depois, aos 50 e, para cada época, fiz o balanço da vida. Cheguei aos 70 e disse: “Não faço balanço mais porque errei todos!” (risos). Mas, agora, me dou conta de que é a última fase. Que a vida me dá chance, ainda, para eu crescer, madurar, fazer sínteses. Quero fazer a vida algo criativo. Usar minha experiência e acumulação de saber (passei a vida estudando), que seja útil para a humanidade. Quando me perguntam: “O que você faz na vida?”, “Sou um agitador cultural. Agito”. Não quero trazer consolo a ninguém, quero trazer angústia. A angústia faz pensar, conversar, ler. E o mundo nos obriga essa angústia. Mas é uma angústia criativa, não é uma angústia que um psicólogo cura. É existencial. E a função do intelectual é manter a humanidade aberta, feliz com aquilo que conquistou, mas criativa para conquistar mais para todo mundo. Diria aquilo que Oscar Niemeyer respondeu: “Você gostaria de ser imortal e eterno?”. “Se é pra todo mundo, sim. Se for só pra mim, não”. Essa é a grande mensagem, de universalização do bem e não a privatização.
OP - O senhor já indicou “buscar o impossível para atingir o possível”. Ao longo do seu percurso, o senhor foi mais águia, ou mais galinha?
Boff - Sempre tive desejo de águia. Desde pequeninho, conflitava com as pessoas, não aceitava as coisas como eram e queria sempre crescer. O campo daquilo que não conhecemos é infinito. E aquilo que conhecemos é mínimo. Quero me confrontar com esse desafio do grande, do infinito. E mantenho esse mesmo entusiasmo, apesar da idade.
OP - E que retoques o senhor tem dado na sua estátua? O senhor diz que, na velhice, temos a oportunidade do nascer novamente e vamos dando nossos próprios retoques...
Boff - A gente realiza o arquétipo de base, aquela energia de fundo que quer se manifestar. Ora de forma melhor, ora de forma pior. E posso dizer que ela nunca foi completa em mim. E talvez só se realize na eternidade, com a mão de Deus. Eu modificaria talvez muitas coisas. Seria mais indignado. Houve uma época em que eu era mais monge, voltado pra dentro, não sentia tanto o drama do mundo. E percebi uma certa alienação. O convento tenta realizar o mundo reconciliado, proteger contra as tentações do mundo e da carne. Mas devemos estar dentro da realidade. Não ficar no porto tranquilo, ir para o mar alto. E não suplicar a Deus, “livre-me das ondas”, mas “me dê forças para enfrentar as ondas”. Essa perspectiva, nunca perdi.
OP - O senhor tem ainda uma vantagem, na velhice, que é ir se desfazendo das máscaras. O senhor tem se desfeito de máscaras?
Boff - Nunca incorporei muita máscara porque fui muito transparente, verdadeiro e tive que pagar um preço: crítica, maledicência, juízo, punições. Mas é o fruto da liberdade. Nunca senti isso como castigo. Digo: “Fiz tantas que mereci, dentro desse sistema”. Acolho. E tento continuar minha fidelidade de base.
OP - E, ao se olhar no espelho dos 72 anos, quem Leonardo Boff vê?
Boff - (pausa). Vejo uma grande interrogação. Nunca sei quem sou. Só sei na medida em que vou realizando a vida. Aí, eu me dou conta: “Sou um mistério pra mim mesmo”. Não sei todos os demônios e anjos bons que estão dentro de mim. Só sei que preciso controlá-los e viver com fidelidade de base, ética, espiritual. Mas não é fácil. O ser humano é contraditório e esse equilíbrio tem que ser, continuamente, construído. Ele tem a natureza da rosa. Não dá para manter a beleza da rosa sem a sua fugacidade.
OP - Seu espírito e sua coragem já lhe permitem fazê-lo sábio?
Boff - Não me considero sábio, me considero uma pessoa que tem coragem de dizer as coisas como as pensa. E não sinto que estou provocando pessoas, mas as coisas têm que ser ditas porque assim as vejo.

OP - O senhor conclui que é velho, cristão, franciscano, teólogo e homem. Mas não se sente completo ainda. E o senhor também assina como “peregrinus” e “peccator”. O que o senhor ainda busca por onde anda e onde o senhor acha que falhou, nesse percurso de ser humano?
Boff - Estou aberto aos encontros que são fortuitos, não são planejados. Eles obedecem a lógica da física quântica, da incerteza. Mas acredito que há um elo de fundo, que leva a aproximar as pessoas. E, juntas, estabelecer um laço. Procuro incentivar esse lado. Que não seja ressentimento, disputa, concorrência. É a minha predisposição de base. Se alcanço, ou não, são as pessoas que têm que dizer e não eu.
OP - Após os anos de cristianismo, de ser franciscano, de favela, o senhor já compreende Deus?
Boff - Não. Quanto mais mergulho nessa realidade, mais percebo que Deus não é só mistério pra nós, Ele é mistério Nele mesmo. É uma energia última, poderosa, continuamente cria e, para Ele, também é surpresa. Mistério que nunca vai se acabar. E o ser humano também é mistério. Por mais que o defina, não consigo enquadrá-lo. Então, somos uma metáfora de Deus. E fico aberto a descobrir mil faces de Deus nas religiões, nas pessoas. Cada um é uma revelação da divindade, que merece ser ouvida, acolhida.


PERFIL
Leonardo Boff é sua assinatura literária e religiosa. O catarinense de Concórdia nasceu Genezio Darci Boff, em 14 de dezembro de 1938. Tornou-se autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, ecologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística. Leonardo, do batismo quando frade, foi-lhe escolhido por ser nome de santo. Mas ele havia de ser gauche, na Igreja, ao atuar na Teologia da Libertação. O intelectual vive em Petrópolis e compartilha dias e noites com a educadora Marcia Maria Monteiro de Miranda. Para saber mais: www.leonardoboff.com.br. 


Ao se despedir, Leonardo Boff parou nos olhos buarqueanos da fotógrafa Talita Rocha. Ela tem os olhos bonitos, não é? exclamou. Eu posso dizer porque já sou velho! riu-se...

Entrevistar o teólogo e intelectual, que fala de Deus e do mundo, é tarefa árdua. O repórter Luiz Henrique Campos deu a pauta: deixemos a política e vamos atrás da felicidade.







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